Olímpicos feitos, parcos
meios
A sulcar a Ria, assim é (era)
o mote para a exposição náutica em Aveiro, no âmbito do evento “Aveiro, capital portuguesa da cultura”, prémio de
consolação para uma outra candidatura, outra capital, a que colocava a cidade
no epicentro da cultura europeia por uns breves momentos… Perdida a Europa,
Aveiro conquista Portugal, instituindo aqui a capital portuguesa da cultura,
neste ano de 2024.
Ovar estaria representado
nesta iniciativa da Câmara Municipal de Aveiro, uma exposição de embarcações típicas da região de Aveiro, com embarcações da naútica de
recreio, diverso modo de encarar a Ria como pátria de embarcações, para além do
icónico moliceiro, da elegante bateira, ou do colossal mercantel.
Tema inédito, o da naútica
de recreio entre as embarcações tradicionais, novo paradigma, experimentado e exposto quando do 1º Congresso das Embarcações Tradicionais, organizado pela Associação dos Amigos da Ria e do barco moliceiro, e pela CMA, já lá vão mais de duas décadas.
Mesmo que Ovar se tenha afirmado desde as muitas Idades Médias, como importantíssimo porto
de pesca, em cujos areais e lagoas recônditas nasceram e nasciam varinas e
vareiros, ovarinos e varinos, o pré-câmbrico da nossa identidade, as
embarcações necessárias ás artes de pesca, que iam evoluindo conforme evoluia a
necessidade de mais pescado e mais sal, culminando o processo no
estabelecimento das indústrias da conserva da sardinha, o Mijoule do nosso
contentamento, essas embarcações que sulcavam a Ria e o Mar pescando ou
transportando a sardinha e o sal, estariam desaparecidas dos nossos areais mas
não de outros, que as adotaram também como suas, nunca sabendo ao certo se das
mesmas espécies se tratavam, pois destas primordiais embarcações não existem quaisquer
genuínos exemplares ou registos.
As brumas do tempo, o declinar
das atividades da pesca artesanal e a própria natureza da atividade, de beira
mar e de beira ria, condenavam as embarcações ao rápido desaparecimento se
abandonadas ao tempo, ao sol e à chuva, o que aconteceu um pouco por toda a
costa portuguesa, ao longo do sec. XX e à medida que ia evoluindo a nossa
relação económica com o mar, os rios e a navegabilidade.
Mas o lamento ao desaparecido
património náutico tradicional de Ovar por enquanto não se repete quando nos
referimos ao património náutico de recreio.
A cenário surge (em
2004) precisamente para esse fim, para
preservar barcos, aqueles que se foram desenvolvendo para as atividades do
desporto e do lazer no território aquamórfico da ria de Aveiro, e que teve mais
uma vez, Ovar como epicentro desse desenvolvimento.
Portanto, e por tão pouco, fomos
contactados pela Câmara de Ovar para estarmos presentes numa exposição de
embarcações em Aveiro a ter lugar no canal central junto ao Rossio, agora
moderno e com uma frequência diversa, por onde passam milhares de turistas nos
moliçários desta industria, com
embarcações representando Ovar neste contexto de embarcações próprias da Ria de
Aveiro, que sulcavam (e ainda sulcam) a Ria e que protagonizaram o surgimento de uma nova
função, um novo “modus vivendi”, as regatas, o pequeno cruzeiro, ria abaixo,
ria acima, do Carregal à Costa Nova e por vezes, até Àgueda.
Desde logo escolhemos as
embarcações que melhor representam, em nosso entender, a realidade ovarense no
que diz respeito á popularização e usufruto da Ria apartir de meados da década
de 40. Andorinhas e Vougas, as embarcações mais emblemáticas deste processo
evolutivo que resultou na criação da SNADO, e na organização de provas de vela
oficiais de âmbito nacional.
Fizemos obras de manutenção
na Melody, Andorinha de 1947, no “Aventura”, vouga brigada naval de 1959, e ficámos
responsáveis por um Vouga de Cruzeiro, ou de Ovar, o “Vouga” que pertenceu a
Alfredo Alves Arroz e José Evaristo Pinto, colocando-o a navegar e
transportando-o para Aveiro, no curto espaço de um mês, terminando um processo
de “hibernação” desta bela embarcação que esteve guardada e preservada numa
garagem durante…. 20 anos. E que tarefa! O “Vouga” apresentava espaços entre o
tabuado de meio centímetro, a caixa do
patilhão assustava qualquer um que se atrevesse a prognosticar sobre a real
estanqueicidade da mesma… e tudo era novidade no que diz respeito a mastro,
palamentas e afins.
Para retirar o mastro do seu berço, a garagem de barcos no
carregal, típicas e únicas construções de beira ria, tivemos a ajuda do sr. Salviano que, acabado de chegar da pesca aos
chocos, se aventurou comigo garagem adentro, soltando e transportanto na sua
bateira, o mastro para o exterior, para a luz. Na "garagem" estavam o Mário e o João N Branco, que manobravam os cabos e os ferrolhos do portão e da grade em guilhotina... segredos e invenções que fazem lembrar a entrada num espaço de descobertas arqueológicas, Indiana Jonas de um templo perdido, na descoberta de um tempo novo.
A “Melody” já conhecia o “caminho”
para o Rossio de Aveiro, mas pelo canal
de S. Jacinto, viagem realizada em 2003, e cujo relato foi publicado na revista
“Patrimónios” da ADERAV. O “Vouga” iria voltar ás águas labirínticas do sul
nascente da Ria, um regresso emocionante como se verá, e o “Aventura”
juntar-se-ia á frota dos Vougas da Costa Nova, representando Ílhavo e Ovar e o
mundo náutico dos Vougas que, sendo sem dúvida de Ílhavo, representam sobretudo
o mundo náutico-desporivo português popularizado a partir de meados dos anos 30
através das políticas do Estado Novo, “Vamos ao Mar”.
E fomos, não ao mar mas à Ria,
rumo a Aveiro, no dia 2 de Agosto de 2024, o Vouga e o Melody, eu e o Tiago, logo pela manhã.
Prevista hora de partida, 9
horas. Hora real de partida, 10.30.
Percalços de última hora, óleo na vela do
motor de 5 HP Suzuky, necessário para nos colocar no bom caminho, rebocando a
Melody… pouca potencia de motor logo se vê, mas com vento favorável e a ajuda
de um estai…
Consequência; a chegada a
Aveiro no pico da maré estava comprometida, o que me fazia temer ainda mais a corrente
da vazante na calle de Aveiro.
Mas partimos, não sem termos
encalhado as embarcações logo na saída da Marina do Carregal, obrigando à
necessária “terapia do lodo”, muito boa para a pele, dizem, e, na atracagem no quebra mar depois de nos
safarmos dos lodos, um mergulho inesperado do Tiago, que falhou o salto ao atracar. O duche matinal, mas com água da Ria.
Motores , "encalhanço", nada de
novo portanto, se excetuarmos o duche tardio do Tiago.
Pelo canal de navegação, que
estava bem vizível na maré baixa e a subir, chegámos à ponte da Varela com
vento fresco. Reabastecer o motor, lançar ferro. Partir novamente. Nada fácil.
O vento de norte, a corrente de sul, as embarcações baralhadas com as forças
contraditórias, o ferro unhou no lodo, foi um sarilho para o libertar, o Tiago
magoou a lombar… passámos a ponte, rumo à Béstida optando pela passagem
nascente, sempre observando os baixios, a água cada vez mais límpida e
transparente. Decidimos subir o estai mais pequeno (tormentin), que se revelou
muito eficaz, no consumo e na poupança do motor, e na velocidade. Atracámos no cais dos moliceiros no Bico da Murtosa, após um largo bem mareado, eram 14 horas, para fazermos o
ponto da situação e confirmar o rumo a seguir.
Após umas conversas com
mergulhadores e mariscadores locais decidimos pelo rumo em frente á Ribeira de
Pardelhas, mas foi uma má opção, o vento crescia e o canal não era visível, nem marcas que nos apontassem o rumo, quase encalhámos numa situação a sotavento, baixio quase fatal. Manobrar com um
motor de fraca potência contra o vento e com uma vela a bater, rebocando um
Andorinha, enfim, por pouco tempo , e após nos libertarmos de um outro baixio,
em largo, safámo-nos!
Retorno ao cais do bico,
optando pelo rumo a Nascente, pelo canal que sai em frente ao Chegado, canal de
onde surgem os veleiros do Sul, ANGE e CNBB, que participam no encontro de
Veleiros organizado pela Junta de Salreu. Já os vi progredirem por ali… e é sem
dúvida um percurso mais abrigado. A maré estava alta. E entramos no canal , bem
visível, que progredia sinuoso em direção ao rio novo do Príncipe, a julgar
pelas arvores ao longe e ainda mais ao longe o marcante e referencial edifício
da Segurança Social surgia por entre a luz difusa dos juncais. Sabia que
teríamos que rumar mais a sul/poente, mas o canal progredia teimoso rumo a
nascente. Algo estava mal eram paisagens e águas desconhecidas quer para mim
quer para o Tiago. Tentámos um pequeno canal onde pontuava um abrigo em
instabilidade perigosa, mas não seria por ali. Continuámos. Seriam umas 15
horas e em Aveiro uma comitiva de fotógrafos e jornalistas esperavam-nos,
comitiva liderada pela dra Sónia, Chefe de divisão da Cultura da CMA. O telemóvel não tinha rede e não conseguia contactar aqueles que nos esperavam, não conseguia a localização no google maps, única forma de saber da nossa localização e do
caminho a seguir.
Restava a memória e a intuição. O Tiago começava a ficar
impaciente e duvidoso do sucesso da viagem. Eu também. Continuámos, era seguro que navegávamos na antiga foz do Vouga, e esperava encontrar o canal do Rio Novo do
Príncipe. Ali ao longe movimentos de terras , algumas máquinas, lembrei-me das
obras da estrada dique… e ao virar um cabeço, uma barreira de terra um
talude, fim de linha. Voltar para trás. O canal era profundo mas não tinha
continuidade. Um aspeto que se deve evitar, este de cortar canais navegáveis e que enriquecem as possibilidades de percursos, uma das riquezas da Ria de outrora
era a possibilidade de subir o Vouga, e o nosso “Vouga”, a embarcação que nos
transportava, já teria percorrido aqueles labirintos. Mas mesmo ela já não os reconhecia tudo
estava diferente, o tempo constrói memórias que já não são o que foram e os
espaços e as paisagens são outros. Estava perdida. E nós também.
O Tiago
afirmava que deveríamos regressar ao cais do Bico e continuar viagem no dia
seguinte. Eu concordava, contrariado, mas a realidade assim aconselhava.
Voltámos, e de novo a navegar contra o Vento, a vela a bater… passámos
novamente pelo canal com o abrigo em plano inclinado, e decidi fazer mais uma
tentativa. Era por ali… e fomos, primeiro um canal estreito 4 metros, estreito
e sinuoso, mais à frente um largo… aberto, o vento atirou-nos contra a margem, o motor em marcha à ré tirou-nos dali, mas no meandro seguinte não conseguimos evitar mais um "encalhanço", não num baixio mas numa mota com diversos tipos de
vegetação, o que não ajudava à manobra de virar as embarcações a vento… nada fácil.
E fomos à água, empurrando e virando a proa ao vento, uma, duas tentativas, e
nada. Na terceira tentativa, com o motor em marcha à ré e uma quebra na
intensidade do vento lá nos safámos mais uma vez, e progredimos uns bons metros
em marcha à ré esperando encontrar um rumo em direção a Sul/poente, mas uns
tufos de junco aflorando á tona da água aconselhavam o retorno ao canal de onde
vínhamos e assim foi. A intensidade das manobras e a eminência de uma situação
irreversível, pelo menos enquanto não abrandasse o vento, deixou marcas na
tripulação, que agora era unânime na decisão do regresso ao cais do Bico da Murtosa.
Assim foi. Rumo a norte, progredíamos
lentos e frustrados, o que deveras me incomodava, pois se o objetivo era chegar
a Aveiro, estávamos no rumo oposto. Olhei
para a altura do sol, ainda tínhamos muita luz pela frente, o combustível
estava pela metade. O Vento continuava rijo. Lentamente a decisão de rumar a
Aveiro, pela terceira vez, ganhava força no meu íntimo e apoderava-se
da minha vontade. Tiago dizia e repetia que, sem sabermos do caminho certo e
com pouco combustível deveríamos atracar quanto antes. Navegávamos em águas
pouco agitadas pelo vento, apesar deste se sentir muito forte . Estariam no
mínimo uns 20 nós de rajada. Ao longe uns tipos do Kite-surf progrediam em grande estilo
por entre os juncais, e ao virar uma curva do canal, surge uma passagem para poente!
Era claro, e a presença dos
Kites confirmava a continuidade deste canal. Tomei a decisão de rumar a Sul, sem
consultar o Tiago, apenas lhe disse, “Vamos experimentar este canal, uma última
tentativa, parece que encontrámos o estreito de Magalhães.”
E era mesmo esse o rumo, não
o tínhamos vislumbrado quando por ali passámos uma hora antes porque
estávamos fixados na direção Sul, e esta passagem dirige-se por breve distância
em direção a Noroeste, estava escondida do anterior enfiamento visual, e agora
que nos dirigíamos a norte, tornava-se bem visível e claro que era aquele o
rumo certo. E decidi apontar a proa do Vouga na direção dos velozes praticantes
de Kite-surf enquanto o Tiago se impacientava ainda mais.
Progredimos umas boas dezenas
de metros e afinal tão perto tínhamos estado daquele canal, via-se a BB a
casa-abrigo em ruínas…
Os praticantes de Kite
aproximavam-se, estudando o nosso rumo, nós o deles… Eram três e uma embarcação
de apoio, progrediam em diferentes direções em boa velocidade, evitando os
juncos e com uma capacidade de manobra que me surpreendia. O Tiago repetia que
não teríamos combustível para chegar a Aveiro , eu contrariava os seus receios,
desenrolámos de novo a pequena vela de estai, o rumo era definitivamente
aquele, pelo menos durante uma milha seria assim. Aveiro já se ia notando com
mais clareza. Conquistámos alguma tranquilidade, resolvi consultar o telemóvel
e ver as horas. 16.15. O estai e o pequeno motor davam a sensação de velocidade
tranquilizadora, patilhão a meio, fazíamos um largo evitando aproximarmo-nos em
demasia dos cabeços que contornávamos sempre com receio de um inesperado baixio
ou obstáculo submerso.
Decidi olhar o telemóvel, chamadas não atendidas… a comitiva
de Aveiro já se tinha ausentado, as vicissitudes da navegação não permitiram a
devida atenção a quem nos aguardava. Impunha-se uma explicação.
As duas embarcações progrediam
agora em bom andamento, o estai folgando a máquina, o vento dando tensão nos
brandais e na escota, o Vouga velejava após longos anos de jejum, estava a
reconhecer este modo de estar, o seu modo de estar natural, flutuando e
velejando, embora com as limitações que se recomendavam e impunham numa
embarcação com mais de 60 anos e que no espaço de um mês passou de uma garagem
onde descansou 20 anos, para as água
livres da Ria.
A luz prateava a água poente
em reflexos cintilantes indicando a Barra ao longe, o mar aberto, mas agora o
nosso rumo seria outro, a cidade dos canais, a Veneza portuguesa, mas as
dúvidas do rumo a seguir regressaram do topo do mastro para onde as tinha
remetido anteriormente. Voltavam. No entanto as referências em terra iam sendo
descodificadas, os armazéns da área Portuária, as construções e as ilhas agora
redescobertas para as atividades lúdicas e turísticas, as salinas submersas, a
transformação radical da paisagem, a erosão das margens… onde as havia.
Duas embarcações na faina, ( qual o rumo para
Aveiro? E apontaram a direção que obviamente seguimos, aproximando-nos de novo
de canaviais ou seja vegetação e obstáculos que teríamos que contornar,
descobrindo os percursos labirínticos mais uma vez, mas com mais certezas mais
convicção. Surge no virar de um cabeço uma ilha habitada, construção precária
mas permanente, uma família habitava aquela pequena ilha, procuramos informação,
confirmava-se o rumo, um cão ladrava, feroz, treinado para afugentar navegantes
e passeantes indesejados… seguíamos as antigas construções dos marnotos,
abrigos da atividade do sal, salinas agora submersas, uma Ria que parece imensa
para quem a percorre lentamente, exitando, procurando o caminho sem piloto, sem
conhecenças seguras. Progredíamos, será por aqui, por ali, surgem ao longe os
mastros das embarcações do Clube Aveirense de vela de Cruzeiro, o Avela…
A
cidade aproximava-se a olhos vistos. Estávamos no canal principal, atracar era
a manobra mais desejada e o cais aproximava-se. Virar a proa a vento enrolar a
vela, mas eis que o vento rijo e a corrente nos atirou de um modo algo
descontrolado contra as defensas da muralha, que não falhámos por uma unha
negra… dali em diante tínhamos as pedras o vento e a corrente tudo a convergir
para um mesmo ponto, o desastre. O que não ocorreu.
Chegámos a Aveiro seriam umas
18 e 45.