Friday, March 21, 2025

Vougas sharpies e Andorinhas - Os clássicos da vela Portuguesa (2)

 2 - Os "Andorinhas"



Baía de Cascais, 1944

Em plena II Guerra Mundial, nas regatas da III Semana Internacional de Cascais, realizadas na baía com o mesmo nome em 1944, estiveram presentes diferentes clubes entre os quais o recém formado Clube de Vela Atlântico, do Porto. Este clube fez-se representar nessas regatas de vela com um tipo de barco, denominado “Andorinha”. A prestação deste barco e dos velejadores do CVA foi de tal efeito que arrecadaram todas as primeiras classificações, referindo a imprensa da época ser esta a embarcação “que pelas suas qualidades náuticas se adapta melhor ao mar da nossa costa Norte, e que tecnicamente pode e deve ser considerado de preferência”.

No Porto, desde a fundação de uma das primeiras, senão a primeira “escola de vela” no Norte do país pela secção de vela do Sport Club do Porto em 1932, esta embarcação reunia muitos adeptos, e assumia total protagonismo nas regatas ali organizadas evoluindo o número de desportistas até à criação da Associação Nacional da Classe Andorinha em 1942, facto que esteve na origem da fundação do Clube de Vela Atlântico, clube fundado precisamente dois anos depois. 

Realizaram-se eventos e regatas, e campeonatos nacionais desta classe de barcos de vela ligeira um pouco por todo o norte do país, entre Caminha, Viana, Povoa, Leixões e... Ria de Aveiro, mas este barco não conquistou Lisboa nem os poderes da vela nacional, pelo que se foi mantendo apenas pelo Norte... As andornhas não voaram para Sul.

Mas afinal, o que são as Andorinhas? De onde vieram, quem as desenhou e cuidou, em alguns casos, como relíquias de família?

François Camatte

Em 1932, em França, a “Union des Sociétés Nautiques de France” procurava uma embarcação para a crescente procura de interessados na aprendizagem e prática da vela. As regatas que se iam realizando nos estuários, baías e golfos de França nomeadamente em Antibes, Menton, St Tropez, Cannes, aumentavam vertiginosamente o número de adeptos deste desporto e potenciavam o aparecimento de novos praticantes. *** Deste modo essa "Société Nautique de France", a que hoje poderia corresponder a Federação Francesa de Vela) encomendou a um jovem arquiteto naval natural de Cannes, que já se tinha evidenciado no desenho dos MOCAT (barcos ligeiros de 5 metros) e que se instalava agora na sua cidade natal, uma embarcação ligeira que procurasse responder a essa crescente procura. Este arquiteto, François Camatte *, respondeu ao desafio desenhando um pequeno veleiro com 5,5 metros de comprimento, um mastro, duas velas, patilhão móvel, de fácil transporte e aparelho, para uma tripulação de dois a três velejadores, a que se chamou “As Côte d`Azur”, e do qual foram construídas logo de início algumas dezenas de unidades. Porque se tratava de um monotipo, isto é um barco construído segundo um plano rigoroso e não uma fórmula, sempre com as mesmas medidas e características vélicas, simplificava muito as regras da competição tornando-a mais justa e equitativa. Esta classe tornou-se algo popular no Sul de França nos anos 30 do sec. XX chegando a atingir as duas centenas de unidades. (3)


François Camatte, (1893-1960)o autor do AS Côte d`Azur, natural de Cannes, participa voluntariamente na 1ª guerra, trabalha como aprendiz num estaleiro naval de Arcachon, volta ao Sul, trabalha em Antibes com o arq Jean Quernel, estabele-se-se por conta própria e logo no início desenha os famosos MOCAT, pequenas embarcações de vela que têm muito sucesso. Desenha o AS Côtte d´Azur para a société nautiques de france. Mas a sua fama advém dos projetos que idealizou segundo as fórmulas Internacionais, 6MI, 8MI. Em 1935 desenhou o “France” e posteriormente o “Gallois”, que vencem a  “French Cup” troféu muito disputado por tripulações internacionais. O seu atelier situava-se na Rue de Provence, 11bis, Cannes. Trabalhava sozinho, com instrumentos muito simples onde se incluía uma simples régua de cálculo. 



Anduriña

 Em 1933, e pesquisando uma embarcação para o recém formado Real Clube Náutico da Corunha, (1926) o médico dermatologista e secretário do Clube, Pastor Nieto Antunes e o engenheiro Eduardo Vila Fano, tendo conhecimento do AS Côte d`Azur desenhado por François Camatte, decidem adotar este modelo para a prática de vela na baía da Corunha. Após algumas pequenas alterações ao projeto tornando-o mais adequado às águas do Atlântico, da autoria de Eduardo Vila Fano, encomendaram num estaleiro próximo, 25 unidades destes “balandros”, organizaram aulas teóricas, editaram um livro de divulgação da arte de velejar. E fundaram uma classe de vela a que chamaram “Anduriña”.

A primeira regata de Andorinhas, com doze embarcações, teve lugar logo no ano seguinte, em 11 de agosto de 1934, evento inserido em celebrações oficiais da cidade, e foi presidida pelo Presidente da República Niceto Alcalá Zamora.

Trabalho notável destes elementos do Clube Náutico da Corunha que contou também com a colaboração de António Blas, responsável pelo aparelho e plano vélico da embarcação. De Cannes o projeto voou até à Corunha, adquiriu nova identidade e um novo símbolo, “Anduriña”, palavra que em castelhano significa “golondrina”. E esta ave irrequieta e resistente de voo rápido e ziguezagueante, serve de símbolo a esta classe de barcos, que esteve na origem e fomentou a prática de vela no Real Clube Náutico da Corunha.  

Andorinhas na Corunha. 1935

SCP - Sport Club do Porto

 Apesar de pertencerem a países diferentes, a Galiza e o Norte de Portugal constroem por si só uma identidade regional, partilham, na sua génese, a mesma língua, o galaico-português, a proximidade e a partilha resultam numa forte mobilidade social.

São muito frequentes as ligações matrimoniais entre as duas comunidades, os negócios, as cumplicidades. Desde a Corunha ao Porto, de Vigo a Viana do Castelo de Santiago de Compostela a Braga, podemos evidenciar fortes relacionamentos sociais e económicos que se sobrepõem às desconfianças históricas que emanavam de Madrid e Lisboa.

Mesmo neste contexto de proximidade, tendo em conta as distâncias e a época, é de algum modo surpreendente que nos primeiros eventos organizados pelo Real Clube Náutico da Corunha, estivessem presentes velejadores portugueses, nomeadamente do Sport Club do Porto, clube eclético fundado em 1904, mas que já tinha criado a sua secção de vela em 1932… Temos notícias de que em 1935 se organizaram comitivas para ir velejar à Corunha respondendo à presença nesse mesmo ano de velejadores Corunheses em Leixões por alturas do S. João… A estes velejadores eram proporcionados barcos para competirem com os velejadores locais, resultando em boas prestações para ambos os lados, dependendo por vezes do fator “casa” … A presença da comitiva portuguesa e dos eventos náuticos na Corunha foi amplamente divulgada nos meios de comunicação locais, nomeadamente no periódico “El Pueblo Gallego" que realçava o trabalho pioneiro e inovador do Clube Náutico da Corunha na divulgação e promoção do desporto da vela, colocando este trabalho na vanguarda do fenómeno desportivo em Espanha. Podemos referir uma notícia que relata o transporte de Andorinhas para Sta Cruz de Tenerife...

Este dinamismo inicial leva a que as regatas de verão do ano seguinte, 1936, sejam programadas para Vigo, e tudo se preparou para o evento, inclusive o transporte das embarcações, e como seria natural, estariam envolvidos velejadores portugueses, como já tinha acontecido nas edições anteriores. Acontece que precisamente nas vésperas do evento dá-se o levantamento militar que inicia a terrível Guerra Civil Espanhola. A República do conservador e liberal Niceto Alcalá Zamora, que procurava com a burguesia e os intelectuais despoletar o desenvolvimento de Espanha rumo ao modernismo, vai desaparecer.

Apesar das circunstâncias, a organização das regatas não desiste, e transfere o campo de regatas de Vigo para… Viana do Castelo.

Esta capacidade de organizar regatas ora em Portugal ora na Galiza, num contexto de guerra iminente, movimentando comitivas de um lado para o outro, celebrando o espírito desportivo e cavalheiresco é facto que nos surpreende, e que requer outro tipo de atenção e estudo. Após o fim da guerra civil Espanhola, retomam-se as regatas e os contactos entre velejadores e clubes náuticos, sendo que entretanto, a Alemanha invade a Polónia, dando início à 2ª Grande Guerra. Desta vez é Portugal que se declara país neutro, e a Espanha já estava cansada da guerra. Os contactos e as regatas entre Porto, Vigo e Corunha continuam. De facto, as andorinhas revelam-se, tanto na terra como no mar, muito resilientes. 


Velejadores do Sport Club do Porto na Corunha, 1935


CVA - Clube de Vela Atlântico

O Clube de Vela Atlântico sediado em Leça, foi fundado em 1944 e como o próprio nome indica é clube exclusivamente dedicado à prática da vela desportiva, o que não acontecia com o Sport Club do Porto. Talvez por falta de autonomia, talvez por desacordos na estratégia a adotar para o desenvolvimento desportivo, a criação do CVA é despoletada também por velejadores do SCP. Não estranha, portanto, que, nas regatas da III Semana Internacional de Vela de Cascais, o Clube de Vela Atlântico se tenha feito representar por embarcações da classe Andorinha…Se os Andorinha estiveram no início do Clube Náutico da Corunha, também é verdade que foi a embarcação preferida pelo CVA para dar início às suas atividades náuticas. Mas o voo das Andorinhas vai ainda mais além.

Esta embarcação com cinco metros e cinquenta centímetros de comprimento, um metro e setenta de boca máxima, inicialmente com doze metros quadrados de área vélica, apresenta coincidências notáveis com os “Caneton” também de origem francesa mais especificamente da Seine Maritime, e com os primeiros “Lightning” oriundos do lago Skaneatles, em  N.Y. USA, veio para Portugal através dos relacionamentos desportivos entre o Real Clube Náutico da Corunha e o Sport Club do Porto, que organizavam regatas conjuntas mesmo após a guerra civil de Espanha. Posteriormente, o Clube de Vela Atlântico lidera a realização de regatas de Andorinhas, e um dos entusiastas deste movimento era o sr. Guilherme de Azevedo que veio a fundar uma velaria, e que esteve na origem da criação da classe Andorinha em Portugal, criando um regulamento geral da classe, adotando o projeto que lhe tinha sido oferecido pelo Real Club Náutico da Corunha, redesenhando o logotipo da classe, desenho simbólico muito feliz pois torna a andorinha muito mais veloz e elegante… (4)

Um outro personagem deve ser também referido, o sr. Eduardo Rothes, de origem alemã que, com Guilherme de Azevedo surgem como sócios fundadores do Clube de Vela Atlântico, entre outros. Radicado no Porto, este sr. Rothes terá iniciado pesquisas pela área da Ria, entre Ovar/Torreira/ S. Jacinto, para a implementação de um complexo turístico cujo objectivo seria o de criar um destino de férias. Nas suas deambulações por Ovar cuja base era a “baía do Carregal”, trazia consigo uma embarcação da classe “Andorinha” com a qual velejava pela nossa Ria, e de tal modo foi entusiasmante esta presença, que logo por aqui surgiram interessados em construir estes barcos. O complexo turístico nunca avançou, mas o sr. Rothes, trocando as águas de Leça pelas águas da Ria, velejava quase todos os fins de semana entre o Carregal e o Areínho, mesmo nos meses de inverno, quando as condições o permitiam. Seria a sua presença e a possibilidade de ter obtido os desenhos do Andorinha, fator decisivo para a vinda destas embarcações para Ovar?



SNADO

 A Associação Desportiva Ovarense, tal como o Sport Club do Porto, era na sua origem uma associação desportiva que reunia a prática de diversas modalidades organizadas em secções. Sendo certo que o futebol ocupou desde sempre lugar de destaque, na Ovarense praticaram-se a elevados níveis, ciclismo, voleibol, andebol, hóquei em patins, atletismo… e vela.

A secção Náutica da Associação Desportiva Ovarense (SNADO) foi fundada oficialmente em 1958, e está intimamente ligada à organização do primeiro Cruzeiro da Ria e às celebrações do Milénio na cidade de Aveiro, onde se organizaram regatas de vela e remo, tendo como clube anfitrião o Sporting Clube de Aveiro.

A criação da SNADO surge como processo natural, decorrente da existência de uma pequena comunidade de velejadores e aventureiros que conheciam e percorriam a ria nas suas diversas vertentes, pesca, lazer e trabalho, e que cruzava gerações e gente de diferentes patamares sociais. A prática desportiva de competição exigia a organização de eventos credíveis e catalisadores de envolvimentos sociais, Ovar, à época,  experimentava forte desenvolvimento económico e social.

Nas primeiras reuniões da SNADO debateram-se diferentes temas e procedimentos, mas em termos estritamente desportivos, para além da filiação na Federação Portuguesa de Vela, a questão do tipo de embarcação a utilizar na prática e desenvolvimento da vela foi tema importante. Na única ata destas reuniões fundadoras e que resistiu até hoje refere-se a compra de três embarcações da classe Andorinha a um clube do Porto, e portanto, eis de novo esta embarcação e esta irrequieta ave na origem de um outro clube de vela, desta vez em Ovar, clube que hoje se denomina NADO - Náutica Desportiva Ovarense.

No entanto, a presença de embarcações da Classe Andorinha em Ovar remonta a finais dos anos de 1940. Na primeira de uma série de (famosas) digressões a Águeda de que há registo, em 1947, podemos identificar três Andorinhas, o “Ovar” o Zélia” e o Furadouro” (5).  Sabemos que alguns Andorinha foram construídos em Ovar, em garagens e armazéns e que percorriam a ria até à Torreira, S. Jacinto, Costa Nova. As Andorinhas marcaram decisivamente o início da prática de vela organizada na Ria de Aveiro e contribuíram para a consolidação da SNADO e do desporto náutico em Ovar, nomeadamente, chegámos a ter campeões nacionais desta classe, em provas que decorreram na Torreira, campo de regatas por excelência, na Ria de Aveiro.


                                  Andorinha, corte transversal e nomenclatura construtiva.

3- Outras embarcações do mesmo tipo foram criadas na altura. Por exemplo, o Caneton” nasceu também em França, em Duclair pelo Cercle de la Voile de la Seine Maritime, em 1932. Em 1948 existiam já mil unidades em França. Apresenta, tal como o “Lightning”, extraordinárias semelhanças com o “Andorinha”. No entanto este é mais comprido em 50 cm totalizando 5,5 m de fora a fora. São referidas também ao “Caneton “boas performances náuticas, mesmo em mar aberto. O “Andorinha”, no entanto, apresenta alguns pormenores que denotam estarmos em presença de uma embarcação mais elaborada e de acabamentos mais cuidados, para além das diferentes dimensões. As diferenças para o “Lighning” são sobretudo visíveis na roda de proa e no ponto de fixação da vela estai. Outras diferenças existirão, mas a forma do casco e o aparelho vélico, a altura do mastro e o leme, tal como o patilhão móvel, dizem-nos tratar-se da mesma família de embarcações, cujos autores tinham preocupações e objetivos idênticos; construção simples e económica, estabilidade mesmo em águas agitadas e criação de uma classe competitiva, destinada á divulgação da prática da vela. Mas neste contexto, a embarcação que se tornou mundialmente conhecida e da qual se construíram dezenas de milhar foi o “Snipe”, desenhado nos USA por Bill Cosby, embarcação que foi substituindo todas as outras pois a entidade reguladora da vela a nível mundial e após uma disputa demorada, decidiu optar este modelo para as competições internacionais.

 4- O Sr Guilherme de Azevedo representa muito do espírito romântico que caracteriza o final do sec xIx, espírito este que contaminou e fez explodir a modernidade no sec. XX. Apaixonado pela marinharia e pela vela, constrói ao que tudo indica o primeiro Andorinha em Portugal com planos fornecidos pelo Clube Náutico da Corunha. Com esta embarcação, no verão de 1938 percorreu a costa Atlântica entre Leixões e Caminha, e de volta a Leixões, demorando na viagem nove dias, sendo que o quinto dia, em Caminha foi dedicado ao passeio pelo Rio Minho. No regresso, pelo sétimo dia, era tanto o mar e o vento que, após entrar a barra de Esposende, quatro pescadores se perderam no mar e um cargueiro encalhou nas imediações. O relato desta viagem foi publicado no periódico “El Ideal Galego” de 14 de janeiro de 1939.


Wednesday, February 26, 2025

Vougas, Sharpies e Andorinhas - Os Clássicos da Vela Portuguesa (1)

 

Os Clássicos da Vela Portuguesa

 1- Os Vougas


 O que é um clássico ?

      Cannes, 2022, regates royales ( foto h. ventura)

Não é simples a definição do que é um barco “clássico”, mas não podemos correr o risco de contornar ou evitar a questão.

De um modo geral considera-se clássico um objeto que se identifica claramente com o tipo a que pertence, correspondendo a determinado período de tempo e que apresenta características construtivas e estéticas de elevada qualidade.

Será um objeto ou artefacto atrativo, que permanece ao longo do tempo preservando as suas características originais, com frequência atingindo valor emocional e simbólico.

Na evolução dos tipos e modelos dos barcos de regata ou de cruzeiro, seja por motivações estéticas, de disputa competitiva, ou de desenvolvimento económico e tecnológico, estes barcos, agrupados em “classes” foram quase sempre evoluindo e inovando, processo este que foi criando um volumoso e significativo património.

No caso dos Vougas, denominação criada para identificar os barcos de António Gordinho “redesenhados” pelo Sport Algés e Dafundo para a criação da Classe Nacional Vouga,  (1939), posteriormente reconhecida pela Federação Portuguesa de Vela (1944), a identificação de um Clássico da classe Vouga revela-se a meu ver, relativamente fácil.

Em primeiro lugar podemos identificar praticamente todas as embarcações que ainda existem, construídas segundo processo construtivo tradicional, respeitando determinados parâmetros e medidas.

Em segundo lugar podemos localizar no tempo a sua génese e desenvolvimento, que ocorreu desde os anos 30 na Costa Nova, Ìlhavo, até ao estuário do Tejo, e ao Norte do país, perdurando e mantendo a sua presença navegando por toda a Ria de Aveiro, sobretudo na Costa Nova, onde se manteve uma frota ativa até finais do séc XX.

 E em terceiro lugar porque o Vouga foi construindo, com a sua presença e performance náutica ao longo de sucessivas gerações, uma prolífera narrativa de sucesso lúdico-desportivo, cujas micro-histórias se inscrevem no imaginário coletivo, consubstanciando um raro factor identitário na náutica de recreio.

Portanto, no processo de redesenho e modernização da classe Vouga rumo a uma monotipia desejável e necessária * não podemos nem devemos ignorar e de modo algum limitar, e relevar para segundo plano as embarcações “Clássicas”, que refletem a evolução desta classe e constituem rico e único património.

É pois importante e pertinente que se criem as condições para que estas embarcações e este património persista e continue a navegar e a regatear, com a dignidade que um clássico com esta importância merece.

Sendo a APCV- Associação Portuguesa da Classe Vouga, a entidade que regulamenta e organiza a inserção da classe Vouga junto da comunidade náutica, sendo para isso reconhecida e mandatada pela Federação Portuguesa de Vela, e sendo a atividade desportiva e competitiva a principal razão de ser desta embarcação, torna-se evidente que compete à APCV contemplar, no seu regulamento técnico, ** o conceito e definição de “Vouga Clássico” assim como criar condições para que nas regatas de Vougas estas embarcações participem de pleno direito e com estímulo competitivo.

O que me parece obvio, pelo processo construtivo, pelo que representa em termos evolutivos da vela portuguesa e pelo elevado grau de atratividade e beleza, sem descurar a "performance" náutica e competitiva", os barcos construídos até 1980 constantes da lista de Vougas do Regulamento da APCV, deveriam ser na sua totalidade considerados "Vougas Clássicos", e poder-se-iam replicar, desde que as réplicas fossem réplicas exatas, obedecendo com rigor ao processo construtivo, ás linhas geométricas e ao aparelho vélico. Para eventuais novas construções poder-se-ia definir o projeto Brigada Naval, aquele que historicamente maior número de embarcações produziu, como projeto a ser contemplado.
Deste modo, poder-se-ia criar uma interessante dinâmica no recrudescimento da arte da carpintaria naval segundo técnicas tradicionais, *** preservando saberes e afirmando este pequeno cluster dentro da economia Azul, não colocando em causa a evolução da classe Vouga rumo ao futuro, que será sempre um futuro em construção permanente, com novas técnicas e novos materiais, que permitem uma produção de embarcações em elevado número e por valores acessíveis para poderem equipar as escolas de vela, lugar onde se formam aos futuros nautas e velejadores. 

* A monotipia é a característica das classes de vela que reconhecem apenas um tipo e um modelo de embarcação como elegível na classe. Até ao momento, e por razões de contexto histórico decorrente de diversas embarcações denominadas Vouga, a APCV reconhece como Vougas três distintos modelos de embarcação: O Vouga Brigada Naval, o Vouga Mestre A. Gordinho e o Vouga Mestre Alberto. ( Oficialmente -Vouga Brigada Naval - Vouga Costa Nova- Vouga Ria Marine)
** O regulamento Técnico da APCV está em revisão, com o objetivo de formalizar apenas um modelo de "Vouga". Este objetivo justifica-se pela necessária inserção da Classe Vouga no mundo da Vela, inclusive a nível internacional. Também porque tornará a classe mais popular e acessível, espera-se. 
*** Não podemos ignorar neste processo a afirmação da carpintaria naval tradicional como fator estratégico para a afirmação da Região de Aveiro. A elevação do barco moliceiro e da carpintaria naval tradicional a Património da UNESCO, a dinâmica da Comunidade Intermunicipal sobre este tema, sobretudo Estarreja e Murtosa, que,  ao fomentarem, com a FOR-Mar, cursos em carpintaria naval, permitem-nos uma leitura construtiva e otimista em relação ao futuro.

                                           
Cannes, 2022- Regates Royales ( foto h. Ventura)


Ovar, 2022- Regata Cenario ( foto H. ventura)



Wednesday, February 19, 2025

Um Snípe de Ílhavo...

 As atividades na CENÁRIO não se resumem apenas aos encontros em redor de boas conversas e boas "palamentas" comensais, ou passeios em águas abrigadas, ou encontros e fomento da carpintaria naval, em tertúlias de maior ou menor afluência, de maior ou menor pertinência. Se a carpintaria naval hoje, é tema importante das agendas políticas da CIRA, muito deve a este grupo de entusiastas que desde o ano de 2002 se lança na aventura de recuperar barcos de madeira. Não construímos de novo, salvo raras exceções, restauramos, recuperamos devolvemos património a uma atividade que nos rejuvenesce e recupera para a vida. A nós e aos barcos, tema de futuro.

A nossa mais recente atividade de restauro tem um significado especial, pois o proprietário acalenta uma paixão pelos barcos alicerçada em gerações de "Homens do Mar", daqueles que sabem e vivem ainda, a epopeia das  pescas... e do bacalhau. 

Trata-se do restauro profundo de um "Snipe, embarcação de regata já antiga,  não sabemos quanto) que se encontrava em mau estado mas ainda digno, apesar de alterações absurdas de foi foi alvo algures em tempos mais recentes. Presume-se que tenha sido construído em Vigo, mas velejou e muito pelas águas da Ria, sobretudo na Costa Nova e agora, na CENÁRIO, rejuvenesce, renasce.

Eis de seguida algumas fotos do processo, que se encontra neste momento em fase de acabamentos do casco, faltando ainda um mastro novo, retranca, leme retrátil, etc, etc...

Desde Novembro, até hoje, de modo mais ou menos intermitente, avançam os trabalhos. Hoje colocámos o quebra-mar e lixamos verniz...


                                                  








                                                  























Thursday, February 06, 2025

A sulcar a Ria - o mantra dos Canais - parte 2

 Ir a Aveiro e voltar, um outro dia de viagem, uma nova digressão ou antes diversão, ou até uma persistente fixação de descoberta daquilo que já foi feito vezes sem conta. Há muitos anos, primeiro era o sal, o peixe, sempre as pessoas, mais recentemente o caulino, as pedras, o vinho... num vai e vem constante entre aveiro e Ovar na carreira da "Barca de Ovar". Mas desta vez o que nos levava e trazia a Aveiro eram os barcos. Antes veículos ,objetos, agora os protagonistas. Barcos, para Exposição "Sulcar a Ria" . ( Veja-se postal anterior)


E como já passou algum tempo desde essa heróica-diminuta façanha, detalhes da viagem serão omissos, mas mesmo assim devemos referir que zarpámos do cais do Puxadouro de manhã por volta da 9 horas e trinta, uma manhã serena e calma, embarcados no "Aventura", com o motor Suzuky HP5 sempre a girar, pois vento era coisa pouca até S. Jacinto... A missão constava de transportar o "Aventura" para a exposição, onde estariam outros dois Vougas, o "Sofia" modelo mestre Gordinho, e o "Beatriz" , modelo Mestre Albeeto Costa, ficando a trilogia completa com o modelo "Brigada Naval"- o "Aventura"- cuja autoria se esvanece no processo evolutivo da classe Vouga nas década sde 50 e 60 do sec XX mas cujo restauro se deve ao laborioso e prolongado tempo de gestação da CENÁRIO entre 2002 e 2005.

Mário, Carlos e o escriba... saindo do cais do Puxadouro

E no Canal de Aveiro

O regresso a Ovar , após um prego no Rossio, no sítios onde se comiam pregos com "ovo a cavalo", ocorreu passando a eclusa, já mastraos descidos e as embarcações em simbiose, longos mastros na horizontal, uma tarefa e um conjunto de riscos que assumimos correr, assim é a vida de nautas amadores, mas cultos e sabedores, sem temores ou cautelas paralizantes.


e lá vamos nós... por dentro até ao bico da Murtosa.


No regresso, transportando e navegando a bordo do vouga "Vouga" (é mesmo assim) rebocando o andorinha "Melody", subindo pelos "labirínticos e surpreendentes " canais do baixo Vouga até ao cais do bico da Murtosa, Pousada do Muranzel à vista, e daí até ao Carregal, em Ovar.

 E foi assim que aconteceu, devemos apenas realçar a originalidade do " combóio de embarcações de mastros pendentes", penso até que inscrevemos mais um modelo de embarcação na fervilhante criatividade das águas de Aveiro, apesar de sabermos que na circunstância de condições adversas o bom senso aconselha que esta criatividade fique quieta e resguardada no cais de abrigo, no porto seguro... longe de águas agitadas.


Longo foi o dia, descer mastros, subir mastros, ultrapassar duas vezes a eclusa, tatear fundos e optar pelo rumo, certo ou incerto, disto e muito mais se trata quando percorremos o mar interior de Aveiro, rumo aos mares vareiros do Rio de Ovar. 




Passando junto á Pascoal... na ida.

                            O vouga "Vouga" no seu repouso, no Grande Canal, ou seja, em Aveiro.




                                                  
E os vougas no seu sítio
                                        
E o regresso que se inicia, junto ao Sal d`Aveiro
Não sem antes testarmos a estabilidade da embarcação...
Progredíamos em águas amplas, finalmente.


A chegada a Ovar, no carregal, e o pior aconteceu... Uma dolorosa queda pois um dos bravos marinheiros calculou mal o salto na atracagem, nada fraturado, mas um hematoma que mais pareciam dois e duas semanas de imóvel repouso.
Ossos do ofício, é no regresso já perto da base que os alpinistas sofrem mais acidentes.