Vougas sharpies e Andorinhas - Os clássicos da vela Portuguesa (2)
2 - Os "Andorinhas"
Baía de Cascais, 1944
Em plena II Guerra Mundial, nas regatas da III Semana Internacional de Cascais, realizadas na baía com o mesmo nome em 1944, estiveram presentes diferentes clubes entre os quais o recém formado Clube de Vela Atlântico, do Porto. Este clube fez-se representar nessas regatas de vela com um tipo de barco, denominado “Andorinha”. A prestação deste barco e dos velejadores do CVA foi de tal efeito que arrecadaram todas as primeiras classificações, referindo a imprensa da época ser esta a embarcação “que pelas suas qualidades náuticas se adapta melhor ao mar da nossa costa Norte, e que tecnicamente pode e deve ser considerado de preferência”.
No Porto, desde a fundação de uma das primeiras, senão a primeira “escola de vela” no Norte do país pela secção de vela do Sport Club do Porto em 1932, esta embarcação reunia muitos adeptos, e assumia total protagonismo nas regatas ali organizadas evoluindo o número de desportistas até à criação da Associação Nacional da Classe Andorinha em 1942, facto que esteve na origem da fundação do Clube de Vela Atlântico, clube fundado precisamente dois anos depois.
Realizaram-se eventos e regatas, e campeonatos nacionais desta classe de barcos de vela ligeira um pouco por todo o norte do país, entre Caminha, Viana, Povoa, Leixões e... Ria de Aveiro, mas este barco não conquistou Lisboa nem os poderes da vela nacional, pelo que se foi mantendo apenas pelo Norte... As andornhas não voaram para Sul.
Mas afinal, o que são as Andorinhas? De onde
vieram, quem as desenhou e cuidou, em alguns casos, como relíquias de família?
François Camatte
Em 1932, em França, a “Union des Sociétés Nautiques de France” procurava uma embarcação para a crescente procura de interessados na aprendizagem e prática da vela. As regatas que se iam realizando nos estuários, baías e golfos de França nomeadamente em Antibes, Menton, St Tropez, Cannes, aumentavam vertiginosamente o número de adeptos deste desporto e potenciavam o aparecimento de novos praticantes. *** Deste modo essa "Société Nautique de France", a que hoje poderia corresponder a Federação Francesa de Vela) encomendou a um jovem arquiteto naval natural de Cannes, que já se tinha evidenciado no desenho dos MOCAT (barcos ligeiros de 5 metros) e que se instalava agora na sua cidade natal, uma embarcação ligeira que procurasse responder a essa crescente procura. Este arquiteto, François Camatte *, respondeu ao desafio desenhando um pequeno veleiro com 5,5 metros de comprimento, um mastro, duas velas, patilhão móvel, de fácil transporte e aparelho, para uma tripulação de dois a três velejadores, a que se chamou “As Côte d`Azur”, e do qual foram construídas logo de início algumas dezenas de unidades. Porque se tratava de um monotipo, isto é um barco construído segundo um plano rigoroso e não uma fórmula, sempre com as mesmas medidas e características vélicas, simplificava muito as regras da competição tornando-a mais justa e equitativa. Esta classe tornou-se algo popular no Sul de França nos anos 30 do sec. XX chegando a atingir as duas centenas de unidades. (3)
François Camatte, (1893-1960)o autor do AS Côte d`Azur, natural de Cannes, participa voluntariamente na 1ª guerra, trabalha como aprendiz num estaleiro naval de Arcachon, volta ao Sul, trabalha em Antibes com o arq Jean Quernel, estabele-se-se por conta própria e logo no início desenha os famosos MOCAT, pequenas embarcações de vela que têm muito sucesso. Desenha o AS Côtte d´Azur para a société nautiques de france. Mas a sua fama advém dos projetos que idealizou segundo as fórmulas Internacionais, 6MI, 8MI. Em 1935 desenhou o “France” e posteriormente o “Gallois”, que vencem a “French Cup” troféu muito disputado por tripulações internacionais. O seu atelier situava-se na Rue de Provence, 11bis, Cannes. Trabalhava sozinho, com instrumentos muito simples onde se incluía uma simples régua de cálculo.
Anduriña
Em 1933, e pesquisando uma embarcação para o recém formado Real Clube Náutico da Corunha, (1926) o médico dermatologista e secretário do Clube, Pastor Nieto Antunes e o engenheiro Eduardo Vila Fano, tendo conhecimento do AS Côte d`Azur desenhado por François Camatte, decidem adotar este modelo para a prática de vela na baía da Corunha. Após algumas pequenas alterações ao projeto tornando-o mais adequado às águas do Atlântico, da autoria de Eduardo Vila Fano, encomendaram num estaleiro próximo, 25 unidades destes “balandros”, organizaram aulas teóricas, editaram um livro de divulgação da arte de velejar. E fundaram uma classe de vela a que chamaram “Anduriña”.
A primeira regata de Andorinhas, com doze
embarcações, teve lugar logo no ano seguinte, em 11 de agosto de 1934, evento
inserido em celebrações oficiais da cidade, e foi presidida pelo Presidente da
República Niceto Alcalá Zamora.
Trabalho notável destes elementos do Clube
Náutico da Corunha que contou também com a colaboração de António Blas,
responsável pelo aparelho e plano vélico da embarcação. De Cannes o projeto
voou até à Corunha, adquiriu nova identidade e um novo símbolo, “Anduriña”,
palavra que em castelhano significa “golondrina”. E esta ave irrequieta e
resistente de voo rápido e ziguezagueante, serve de símbolo a esta classe de
barcos, que esteve na origem e fomentou a prática de vela no Real Clube Náutico
da Corunha.
Andorinhas
na Corunha. 1935
SCP - Sport Club do Porto
Apesar de pertencerem a países diferentes, a Galiza e o Norte de Portugal constroem por si só uma identidade regional, partilham, na sua génese, a mesma língua, o galaico-português, a proximidade e a partilha resultam numa forte mobilidade social.
São muito frequentes as ligações matrimoniais
entre as duas comunidades, os negócios, as cumplicidades. Desde a Corunha ao
Porto, de Vigo a Viana do Castelo de Santiago de Compostela a Braga, podemos
evidenciar fortes relacionamentos sociais e económicos que se sobrepõem às
desconfianças históricas que emanavam de Madrid e Lisboa.
Mesmo neste contexto de proximidade, tendo em conta as distâncias e a época, é de algum modo surpreendente que nos primeiros eventos organizados pelo Real Clube Náutico da Corunha, estivessem presentes velejadores portugueses, nomeadamente do Sport Club do Porto, clube eclético fundado em 1904, mas que já tinha criado a sua secção de vela em 1932… Temos notícias de que em 1935 se organizaram comitivas para ir velejar à Corunha respondendo à presença nesse mesmo ano de velejadores Corunheses em Leixões por alturas do S. João… A estes velejadores eram proporcionados barcos para competirem com os velejadores locais, resultando em boas prestações para ambos os lados, dependendo por vezes do fator “casa” … A presença da comitiva portuguesa e dos eventos náuticos na Corunha foi amplamente divulgada nos meios de comunicação locais, nomeadamente no periódico “El Pueblo Gallego" que realçava o trabalho pioneiro e inovador do Clube Náutico da Corunha na divulgação e promoção do desporto da vela, colocando este trabalho na vanguarda do fenómeno desportivo em Espanha. Podemos referir uma notícia que relata o transporte de Andorinhas para Sta Cruz de Tenerife...
Este dinamismo inicial leva a que as regatas de
verão do ano seguinte, 1936, sejam programadas para Vigo, e tudo se preparou
para o evento, inclusive o transporte das embarcações, e como seria natural,
estariam envolvidos velejadores portugueses, como já tinha acontecido nas
edições anteriores. Acontece que precisamente nas vésperas do evento dá-se o
levantamento militar que inicia a terrível Guerra Civil Espanhola. A República
do conservador e liberal Niceto Alcalá Zamora, que procurava com a burguesia e
os intelectuais despoletar o desenvolvimento de Espanha rumo ao modernismo, vai
desaparecer.
Apesar das circunstâncias, a organização das
regatas não desiste, e transfere o campo de regatas de Vigo para… Viana do
Castelo.
Esta capacidade de organizar regatas ora em
Portugal ora na Galiza, num contexto de guerra iminente, movimentando comitivas
de um lado para o outro, celebrando o espírito desportivo e cavalheiresco é
facto que nos surpreende, e que requer outro tipo de atenção e estudo. Após o
fim da guerra civil Espanhola, retomam-se as regatas e os contactos entre
velejadores e clubes náuticos, sendo que entretanto, a Alemanha invade a
Polónia, dando início à 2ª Grande Guerra. Desta vez é Portugal que se declara
país neutro, e a Espanha já estava cansada da guerra. Os contactos e as regatas
entre Porto, Vigo e Corunha continuam. De facto, as andorinhas revelam-se,
tanto na terra como no mar, muito resilientes.
Velejadores
do Sport Club do Porto na Corunha, 1935
CVA - Clube de Vela Atlântico
O Clube de Vela Atlântico sediado em Leça, foi fundado em 1944 e como o próprio nome indica é clube exclusivamente dedicado à prática da vela desportiva, o que não acontecia com o Sport Club do Porto. Talvez por falta de autonomia, talvez por desacordos na estratégia a adotar para o desenvolvimento desportivo, a criação do CVA é despoletada também por velejadores do SCP. Não estranha, portanto, que, nas regatas da III Semana Internacional de Vela de Cascais, o Clube de Vela Atlântico se tenha feito representar por embarcações da classe Andorinha…Se os Andorinha estiveram no início do Clube Náutico da Corunha, também é verdade que foi a embarcação preferida pelo CVA para dar início às suas atividades náuticas. Mas o voo das Andorinhas vai ainda mais além.
Esta embarcação com cinco metros e cinquenta centímetros de comprimento, um metro e setenta de boca máxima, inicialmente com doze metros quadrados de área vélica, apresenta coincidências notáveis com os “Caneton” também de origem francesa mais especificamente da Seine Maritime, e com os primeiros “Lightning” oriundos do lago Skaneatles, em N.Y. USA, veio para Portugal através dos relacionamentos desportivos entre o Real Clube Náutico da Corunha e o Sport Club do Porto, que organizavam regatas conjuntas mesmo após a guerra civil de Espanha. Posteriormente, o Clube de Vela Atlântico lidera a realização de regatas de Andorinhas, e um dos entusiastas deste movimento era o sr. Guilherme de Azevedo que veio a fundar uma velaria, e que esteve na origem da criação da classe Andorinha em Portugal, criando um regulamento geral da classe, adotando o projeto que lhe tinha sido oferecido pelo Real Club Náutico da Corunha, redesenhando o logotipo da classe, desenho simbólico muito feliz pois torna a andorinha muito mais veloz e elegante… (4)
Um outro personagem deve ser também referido, o
sr. Eduardo Rothes, de origem alemã que, com Guilherme de Azevedo surgem como
sócios fundadores do Clube de Vela Atlântico, entre outros. Radicado no Porto,
este sr. Rothes terá iniciado pesquisas pela área da Ria, entre Ovar/Torreira/
S. Jacinto, para a implementação de um complexo turístico cujo objectivo seria
o de criar um destino de férias. Nas suas deambulações por Ovar cuja base era a
“baía do Carregal”, trazia consigo uma embarcação da classe “Andorinha” com a
qual velejava pela nossa Ria, e de tal modo foi entusiasmante esta presença,
que logo por aqui surgiram interessados em construir estes barcos. O complexo
turístico nunca avançou, mas o sr. Rothes, trocando as águas de Leça pelas
águas da Ria, velejava quase todos os fins de semana entre o Carregal e o
Areínho, mesmo nos meses de inverno, quando as condições o permitiam. Seria a
sua presença e a possibilidade de ter obtido os desenhos do Andorinha, fator
decisivo para a vinda destas embarcações para Ovar?
SNADO
A secção Náutica da Associação Desportiva
Ovarense (SNADO) foi fundada oficialmente em 1958,
e está intimamente ligada à organização do primeiro Cruzeiro da Ria e às
celebrações do Milénio na cidade de Aveiro, onde se organizaram regatas de vela
e remo, tendo como clube anfitrião o Sporting Clube de Aveiro.
A criação da SNADO surge como processo natural,
decorrente da existência de uma pequena comunidade de velejadores e
aventureiros que conheciam e percorriam a ria nas suas diversas vertentes,
pesca, lazer e trabalho, e que cruzava gerações e gente de diferentes patamares
sociais. A prática desportiva de competição exigia a organização de eventos
credíveis e catalisadores de envolvimentos sociais, Ovar, à época, experimentava forte
desenvolvimento económico e social.
Nas primeiras reuniões da SNADO debateram-se diferentes temas e procedimentos, mas em termos estritamente desportivos, para além da filiação na Federação Portuguesa de Vela, a questão do tipo de embarcação a utilizar na prática e
desenvolvimento da vela foi tema importante. Na única ata destas reuniões fundadoras e que resistiu
até hoje refere-se a compra de três embarcações da classe Andorinha a um clube
do Porto, e portanto, eis de novo esta embarcação e esta irrequieta ave na origem de um outro clube de vela,
desta vez em Ovar, clube que hoje se denomina NADO - Náutica Desportiva
Ovarense.
No entanto, a presença de embarcações da Classe
Andorinha em Ovar remonta a finais dos anos de 1940. Na primeira de uma série
de (famosas) digressões a Águeda de que há registo, em 1947, podemos
identificar três Andorinhas, o “Ovar” o Zélia” e o Furadouro” (5). Sabemos que alguns Andorinha foram
construídos em Ovar, em garagens e armazéns e que percorriam a ria até à
Torreira, S. Jacinto, Costa Nova. As Andorinhas marcaram decisivamente o início
da prática de vela organizada na Ria de Aveiro e contribuíram para a
consolidação da SNADO e do desporto náutico em Ovar, nomeadamente, chegámos a
ter campeões nacionais desta classe, em provas que decorreram na Torreira,
campo de regatas por excelência, na Ria de Aveiro.
Andorinha, corte transversal e nomenclatura
construtiva.
3- Outras embarcações do mesmo tipo foram criadas na altura. Por exemplo, o Caneton” nasceu também em França, em Duclair pelo Cercle de la Voile de la Seine Maritime, em 1932. Em 1948 existiam já mil unidades em França. Apresenta, tal como o “Lightning”, extraordinárias semelhanças com o “Andorinha”. No entanto este é mais comprido em 50 cm totalizando 5,5 m de fora a fora. São referidas também ao “Caneton “boas performances náuticas, mesmo em mar aberto. O “Andorinha”, no entanto, apresenta alguns pormenores que denotam estarmos em presença de uma embarcação mais elaborada e de acabamentos mais cuidados, para além das diferentes dimensões. As diferenças para o “Lighning” são sobretudo visíveis na roda de proa e no ponto de fixação da vela estai. Outras diferenças existirão, mas a forma do casco e o aparelho vélico, a altura do mastro e o leme, tal como o patilhão móvel, dizem-nos tratar-se da mesma família de embarcações, cujos autores tinham preocupações e objetivos idênticos; construção simples e económica, estabilidade mesmo em águas agitadas e criação de uma classe competitiva, destinada á divulgação da prática da vela. Mas neste contexto, a embarcação que se tornou mundialmente conhecida e da qual se construíram dezenas de milhar foi o “Snipe”, desenhado nos USA por Bill Cosby, embarcação que foi substituindo todas as outras pois a entidade reguladora da vela a nível mundial e após uma disputa demorada, decidiu optar este modelo para as competições internacionais.
4- O Sr Guilherme de Azevedo representa muito do espírito romântico que caracteriza o final do sec xIx, espírito este que contaminou e fez explodir a modernidade no sec. XX. Apaixonado pela marinharia e pela vela, constrói ao que tudo indica o primeiro Andorinha em Portugal com planos fornecidos pelo Clube Náutico da Corunha. Com esta embarcação, no verão de 1938 percorreu a costa Atlântica entre Leixões e Caminha, e de volta a Leixões, demorando na viagem nove dias, sendo que o quinto dia, em Caminha foi dedicado ao passeio pelo Rio Minho. No regresso, pelo sétimo dia, era tanto o mar e o vento que, após entrar a barra de Esposende, quatro pescadores se perderam no mar e um cargueiro encalhou nas imediações. O relato desta viagem foi publicado no periódico “El Ideal Galego” de 14 de janeiro de 1939.