"Viam-se os canais da ria, de madrugada, no pino do inverno, com a canoa a avançar como um fantasma até perto dos patos adormecidos, cortando a crosta do gelo à flor da água. Misturava também memórias de infância do meu pai e da minha mãe, com as grandes merendas familiares em Outubro, lá para o sul, perto das pateiras, numas grandes covas ovais de areia finíssima, cercadas pela mata misteriosa, e que agora já não se encontram. [...] Tudo isto numa velha casa um pouco em ruínas, lá para os lados da Ribeira, longe de tudo."
Nesta geografia orgânica, de compostos flutuantes e águas correntes, canais e ribeiros estruturantes do território aquamórfico, reticulado labirinto entre canízias sobre areias submerssas e lodos inconstantes, percorrem-se linhas de sedimentação de ideais, na interpretação do meio ecológico onde nos situamos e decidimos ancorar a vida , vida esta cada vez mais vivida em substratos de mobilidade colorida e mutante. O desafio é assentar uma construção, mesmo que efémera, e, com este gesto fundador, reiniciar o processo. Experimentamos uma metamorfose em movimento? Importa deixar marcas, referências, que consubstanciem o caminho. O fio de ariane importa cada vez mais.
Na Cenário ocorre uma residencia artística de Afonso Marmelo *, que com um amigo experiemntaram uma viagem simples, entre o cais do Puxadouro a Ribeira e de volta ao Puxadouro. Pelo caminho, lutaram com os elementos, ( com eles próprios?) e consolidaram uma ideia de sítio. Sítio no sentido de LOCUS, de local onde decidimos assentar o "acampamento".
Descer o rio Caster, da Ribeira à foz, transportar a canoas "em braços", romper silvados e ultrapassar obstáculos, de tudo um pouco ocorreu nesta "aventura", uma descoberta.
H. Ventura
partida Cais do Puchadouro
hora de partida 11h30
Seguimos pelo braço da ria à aventura. O Pedro não tinha qualquer experiência prévia de navegação, eu tinha apenas a experiência da minha regata com a cenário e de uma viagem em canoa na lagoa das sete cidades, nos açores. Entre o tempo de acertarmos as nossas remadas e a força da maré, demoramos 1h30 a dobrar o cabo entre o cais da tijosa e cais do torrão. Após o esforço inicial pudemos navegar mais tranquilamente a favor da corrente até à nossa paragem.
paragem Casa Moita do Padeiro
hora de chegada 13h30
Chegamos através de um pequeno canal que terá sido usado em tempos pelos habitantes da casa. Atracamos o barco num pequeno cais em ruínas ao lado da mesma. A nossa intenção era fazer uma pequena visita a esta casa, e, ainda a uma outra mais afastada, em ruínas, mais modesta, e que, pelo aspecto da construção, parece também ser mais antiga. Por causa do desgaste físico da nossa viagem a remos decidimos explorar a pé o caminho até à segunda casa. Porém, com a maré já a descer e as dificuldades de acesso do caminho, por volta das 14h30, resolvemos voltar para trás. O receio prendeu-se com a incerteza do tempo que demoraríamos a regressar, que, tendo em conta o tempo anterior, justificava-se.
Com os braços doridos, optamos por experimentar uma rota diferente e mais curta para voltar ao ponto de partida. Seguimos pelos canais estreitos à volta da casa até chegarmos ao fim dos mesmos. Aí, pegamos no barco à mão e passamo-lo do canal da ria para o canal da foz do cáster que intersecta a ria de aveiro. A partir daqui tivemos a maré a nosso favor, mas a quantidade de ramos e braços de árvores no nosso caminho dificultaram a passagem. A certo ponto, encontramos um tronco a interromper o canal; confrontados com esta adversidade saímos do barco para as margens, e, com cuidado para não cairmos à água, levantamo-lo com as mãos e passamo-lo para o outro lado. Esta foi talvez a parte mais entusiasmante e aventureira da viagem. Todos sabemos quão lindas são as paisagens da ria de aveiro, e, a beleza da interseção da foz do cáster com a ria de aveiro somada à fantástica sensação de navegar estas águas, foi não só uma recompensa ao nosso esforço, assim como um tónico para reunirmos as forças necessárias rumo ao nosso regresso.
chegada Cais do Puchadouro
hora de chegada 16h10
"Ria de Aveiro. Céu e água. Mar, sol e sal. Moliço também."
Roteiro e fotos: Afonso Marmelo, inserido no Projeto "Reino Escondido"
* nota biográfica | afonso marmeloPorto, 1995. Licenciado em Tecnologia da Comunicação Audiovisual pela Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Desde 2014 tem colaborado em projectos com diversas instituições como a Casa da Música, assim como produtoras de cinema como Ukbar Filmes, Terratreme, entre outras. Tem trabalhado também como assistente de artistas portugueses como Salomé Lamas ou Rui M. Xavier. Para além do seu trabalho em Cinema e Televisão, desenvolve, igualmente, um percurso na área da fotografia e das artes visuais.
2 Comments:
Um texto, com esta qualidade, de 2 em 2 meses, parece-me pouco! Mas antes pouco que nada, e assim, não se gastam as palavras! ⛵
Passando por aqui só para dar os parabéns a quem fez a aventura e o relato. Vou tentar recriar o vosso percurso em Kayak. Abraço a todos
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